As rodas de ferro de um carro de bois faziam um barulho
que nem chegava a ser metálico no empedrado da estrada mesmo em frente à venda
da Tia Zeca. Na década de 1960, a mistura de taberna e mercearia da Tia Zeca
era paragem obrigatória para quem passava, para quem queria enviar uma carta,
para quem queria comprar um pouco de arroz ou massa vendida avulso. Anos a fio
uma tradicional venda no rés-do-chão colmatava as mais variadas necessidades da
população dornelense. No carnaval as crianças que passavam em frente à venda a
caminho da escola entravam para comprar estalinhos, máscaras e confettis.
Alegria e sonhos saíam daquele estabelecimento. As décadas de 1970 e 1980 foram
pródigas em troca de correio postal. O grande “boom” da emigração fez-se sentir
em Dornelas como em qualquer aldeia da Beira Interior. Cartas no Natal, nos
aniversários, no fundo durante todo o ano ligavam familiares e permitiam a
troca de informação além-fronteiras. Na fachada da venda uma caixa postal vermelha
na parede e um placar do senhor montado no cavalo a tocar trombeta com a
inscrição “CTT” denunciavam que era ali que Dornelas se ligava ao mundo. A Tia
Zeca enviuvou faltavam três anos para fazer cinquenta anos de casada. O seu
marido, companheiro de vida e parte fundamental nos destinos de tão importante estabelecimento
partiu deixando a esposa mais de duas décadas à frente do destino da venda de
todos os dornelenses. As décadas de 1980 e 1990 trouxeram verões calorosos em
que as crianças se deliciavam com os gelados da “Olá” que nunca faltaram
naquela venda. Crianças livres, que faziam da rua e do ar livre o palco das
brincadeiras, onde o espirito da amizade se notava nas calças rotas e joelhos
esfolados, nas meias-calças coloridas com borboto e sandálias sobre utilizadas,
nos jogos e nas gargalhadas. Domingos soalheiros com velhinhas sentadas nos
bancos de pedra encostados à venda ponham a conversa em dia. Falava-se de
pessoas, falava-se da agricultura, falava-se dos animais de criação, falava-se
da vida. E a Tia Zeca empunhava um garrafão de “Catalino” para servir simples
ou traçado a homens que paravam, conviviam, negociavam gado e produtos agrícolas.
O início da década de 2000 marcou o fim de uma vida ao
serviço da comunidade. Ainda se viria a transaccionar em euros durante 2 anos.
Tudo fez a Tia Zeca para perlongar a existência deste estabelecimento. Mas o tempo
não para nem dá tréguas. Há uma altura da vida em que o avançar da idade e as consequências
desta falam mais alto que a vontade. Resiste o rés-do-chão que foi um dia a
capital do movimento rural de uma comunidade. Resiste a Tia Zeca que olha pela porta vultos que passam apressados ao som da chuva primaveril no empedrado da estrada. Espera
receber quem queira entrar para se sentar ao seu lado e conversar… e recordar…
Nota técnica:
Fotografia vencedora do concurso "Imagens com História" da revista "O Mundo da Fotografia Digital" nº 87 (Julho 2012)
Agradeço a disponibilidade da Sra Maria José Tenreiro, conhecida como Tia Zeca por permitir este e outros registos fotográficos.
A fotografia foi captada com uma câmara fotográfica Canon EOS 60D com lente 18-135mm, tripé, cabo disparador e luz ambiente. Modo prioridade à abertura. Abertura de diafragma f/3,5. Velocidade de obturação 1/10s. ISO 400 (fraca luminosidade e assunto em movimento requeriam um tempo de exposição não muito longo, daí o ISO elevado).
Fotografia e texto: Bruno Andrade
Que bonita homenagem a todas as "tias Zecas" (e "ti Zés") das nossas aldeias da Beira mais Alta.
ResponderEliminar"Recordar é Viver".
O meu abraço forninhense/aluaP
Obrigado Paula.
EliminarÉ sempre bom ouvir essas palavras. Parabéns também a ti pelo trabalho que desenvolves por Forninhos.
Abraço