Era já fim de
tarde e lá estava eu a descer a calçada em direcção ao fundo do povo, quando
passei em frente à sapataria (não sei como lhe chamar) do Sr. Carlos Gomes.
Depois de várias tentativas frustradas para encontra-lo lá, naquela tarde
fresca que ameaçava abrir o céu só para uns chuviscos de Junho, apurei o olhar
e ao longe reparei numa porta aberta que encimava umas escadas de pedra. Era
hoje o dia. Voltei-me então para a esquerda e subi a ladeira de terra batida. À
esquerda uma parede de pedra de uma casa velha. À direita latas mais velhas que
eu e vencidas pela ferrugem, expulsavam para fora da terra dentro de si flores
toscas e coloridamente desajeitadas. A seguir aos arcaicos vasos engenhosamente
improvisados, um pequeno galinheiro de tábuas desordenadamente pregadas e um metro
quadrado de rede farrusca, estava de porta aberta mostrando-me a palha remexida
no chão e o poleiro. Penetrei por entre a arcada de granito e os meus pés pisaram
a laje onde molhos de lenha empilhados não impediam meia dúzia de galinhas de
deambular desordenadas bicando tudo o que o chão tinha para lhes oferecer. Dei
mais uns passos para atravessar a grande laje de granito que formava o chão do pátio
e já com o cão a ladrar atrás de mim, eis que fiquei ao fundo das escadas que
eram encimadas pelo atelier (continuo sem saber como lhe chamar) do Sr. Carlos.
Madeira escurecida pelo tempo formava a parede exterior deste anexo. A porta
aberta deixava-me antever a claridade emanada do seu interior, resultado da luz
natural do fim de tarde que entrava pela janela oposta à porta. Quando chamei
por ele ouvia já o som do manuseamento da ferramenta. Subi as escadas e fui
recebido pelo seu característico sorriso e boa disposição. Passei a porta num
instante e entrei num mundo de “coisas”. Coisas penduradas nas paredes, coisas
penduradas no tecto, coisas que abarrotavam prateleiras, coisas despojadas pelo
soalho, enfim, coisas e mais coisas. O leve cheiro a graxa chegava a ser
agradável de tão suave. Sentei-me num espectacular banco de madeira em frente ao
Sr. Carlos e a viagem começou. Toda aquela confusão (para mim) de “coisas”
despojadas pela oficina de calçado (continuo sem saber que nome lhe dar), o seu
material de trabalho e o suave odor a graxa eram a combinação perfeita para
despertar em mim sensações que ao sabor das palavras experientes do homem me
fizeram viajar por tempos em que as pessoas mandavam fazer os sapatos por
encomenda. Um par de sapatos por ano. Feitos à mão através de uma arte que foi
próspera em trabalho e é agora próspera em findar. Das suas palavras surgia a
pena de não ter conseguido passar a sua arte aos seus descendentes. A pena de
ver no seu trabalho o fim de uma era. Da sua simpatia surgiam explicações para
isso. Da sua paciência surgiam ensinamentos do seu ofício.
Posso
continuar ainda sem saber que nome dar ao local onde o Sr. Carlos Gomes
trabalha. Mas uma coisa sei de certeza. Aquele seu espaço de uma vida é um
local onde a tradição, o trabalho e a verdade fazem parte da história de um
povo e se cruzam com a história de um país.
(siga este
link e veja também o vídeo-documentário realizado por mim em 2010 com o Sr.
Carlos Gomes em actividade e dando várias explicações: http://www.youtube.com/watch?v=FFbwxeqWw2w
)
A escadaria de pedra (e madeira) que dá acesso ao seu local de trabalho
Sr. Carlos Gomes em actividade no seu atelier
As prateleira com materiais do seu trabalho
Antigamente fazia sapatos de raíz, hoje em dia faz arranjos em calçado
Sr. Carlos Gomes
Com a velhinha máquina Singer cozia os cabedais do calçado
Formas de calçado de madeira, usadas para a sua construção de raíz
A janela fornece luz natural durante todo o dia
O "pé de ferro" é um utencilio essêncial ao seu ofício
Tio Carlos Sapateiro
Em actividade
Todo o espaço está recheado, desde as paredes ao chão
Uma arte primorosamente manual
Um ofício de rigor e sabedoria passada pelo trabalho
A boa disposição e simpatia são naturais do Sr. Carlos Gomes
Agradecimento:
Agradeço ao
Sr. Carlos Gomes, carinhosamente e profissionalmente conhecido por Tio Carlos
Sapateiro, toda a sua disponibilidade, simpatia e prazer de receber no seu
espaço de trabalho. Também por todas as suas histórias de outros tempos
partilhadas com sabedoria.
Fotografias e texto: Bruno Andrade
Onde é a terra do sr. Gomes sapateiro?
ResponderEliminarDornelas, Aguiar da Beira, Guarda
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