segunda-feira, 25 de junho de 2012

Fado


 O dia acordou na cidade. Agradáveis notas musicais de uma guitarra portuguesa acompanhavam os raios de sol matinais que suavemente iam acordando a rapariga. Abriu os olhos, levantou-se, despejou alguma água do jarro na pia e com as mãos em concha levou-a á cara. Recordou a noite anterior. Almas vencidas, sombras bizarras, amor, ciúme, cinzas e lume, dor e pecado. Olhou-se no espelho manchado pelo tempo, admirou a sua face, sentiu a sua vida e sorriu. Vestiu a indumentária do costume, calçou as chinelas e saiu à rua. Em desenfreadas corridas loucas, os putos de calção roto e pé descalço pareciam bandos de pardais à solta, os putos deste povo que aprendiam a ser homens. A rapariga rápida e suavemente deslizou entre eles e desceu a calçada. Passou pelo barbeiro onde não havia mais de dois clientes, mas que não ficaram indiferentes à sua passagem como quem baila em vez de caminhar, como quem canta em vez de falar. Eles acenaram, ela sorriu e seguiu. Em sentido contrário vinha a varina cantando e anunciando a sardinha fresca que trazia do cais de outrora. Era varina, usava chinela, tinha movimentos de gata, na canastra trazia a caravela, no coração a fragata. Na leitaria falava-se da vida, falava-se do bairro, da cidade, falava-se do fado, canto da nossa tristeza, choro da nossa alegria. As pessoas acenaram, a rapariga sorriu e continuou. Desceu as escadas estreitadas pelas casas de paredes caiadas, sentiu o cheirinho a alecrim e das rosas que floriam nos vasos às janelas. Passou pelas lavadeiras que esfregavam vivamente a roupa molhada e cantavam o que o coração lhes ditava. Cantavam o fado que fugia nas asas do vento, às vezes soltava um lamento e pedia para ser achado. Acenaram à rapariga, ela sorriu e seguiu. Seguiu pelas vielas mais escondidas onde as tascas cheiravam a iscas escovadas e a vinho. Segui e chegou ao rio, rio onde embarcações doiradas a bailar traziam marinheiros que a saudavam. Ela sorriu e ofereceu-lhes uma melodia que os embeiçava. Embeiçava-os por ela, pela cidade, pelo fado. Que estranha forma de vida tinha o seu coração. E quando o sol caiu sobre as águas num nervoso líquido de ouro intenso ela voltou-se para a cidade. Despediu-se dos marinheiros, despediu-se das gaivotas, despediu-se do rio, sorriu e seguiu. Mergulhou pelas vielas da cidade com um destino na alma. As luzes das ruas acenderam-se, ouvia guitarras vibrando e vozes cantando, ouvia rumores de ternura. Cada vez mais se aproximava do seu destino, cada vez ouvia as guitarras que davam um som à vida, cada vez mais ouvia as canções que encantavam todos os corações. Chegou à porta da taberna e entrou. Entrou e as pessoas aclamaram-na, as pessoas que queriam embriagar-se com o som da sua voz, com as histórias da sua cantiga. A rapariga veio para o fado e ali, a cada noite perdida havia cada vez mais fado na sua vida.
Baixaram-se as luzes das candeias… Ela fechou os olhos e abriu a alma… Fez-se silêncio… E a Severa cantou o fado…

Notas:
Fotografia captada no Bairro Alto em Lisboa na Tasca do Chico.

Fotografia e texto: Bruno Andrade (com nuances de vários fados)

2 comentários:

  1. Olá Bruno, blog bem eloquente... As fotos estão espectaculares, as histórias retratam um bem que se vai perdendo com o tempo, as nossas raízes e cultura popular que se esvanecem...
    Parabéns pela iniciativa e pelo trabalho.
    Abraço
    Pedro Sousa

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    Respostas
    1. Obrigado pelas palavras Pedro.
      Boa continuação e tudo de bom.
      Abraço
      Bruno Andrade

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