quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Vidas de Colmo

Tal como este telhado de colmo está no fim da sua vida, também a tia Ana e o tio Carlos aproveitam o resto de todas as suas forças para não se deixarem morrer aos poucos dentro de casa, prostrados, ultrapassados pela velhice. Tantos filhos que ali foram criados, tantas vidas que nasceram, cresceram e voaram, em direção ao mundo, esse mundo que rouba os filhos das aldeias, mas que fazer, é onde se faz e ganha a vida. Também um deles fora ali nascido e criado outrora, na casa grande, junto ao lameiro, já nem o tempo se lembra bem. Esse tempo que como um alambique, destila o bagaço das vidas. Foi nessas alturas da meninice do tio Carlos e da resma de irmãos que foi construída aquela corte com telhado de colmo. Faz sempre falta um lugar coberto para dar apoio aos afazeres do campo, pois a natureza não para e não dá descanso ao homem sob o castigo de perder colheitas. Nesse antes em que as colheitas eram a única coisa que os homens e mulheres tiravam desta vida para viver e fazer viver, a custo de mãos calejadas, gretadas, cansaço e suor que de poeirento parecia melaço. E por lá foi criado e com a quinta acabou por ficar, a essa quinta a que mais tarde se juntou a tia Ana por contrato matrimonial. E a corte com telhado de colmo lá se mantinha qual torre de vigia a guardar o lameiro. É não estragar porque já nem eles sabiam bem a arte dos antigos para fazer tais habilidades. Pinhais de um lado, fragas do outro, cabeços também, onde no São João iam roçar o rosmaninho para as fogueiras. Era ver a canalha a saltar para se fumar e os males espantar. Ninguém disse que eram tempos fáceis, ninguém está aqui para os recordar como tal, mas sim para os recordar porque eles existiram e quem os viveu merece que além das dificuldades que nunca ninguém voltará a passar, também se recorde a força e a coragem de quem enfrentou uma conjuntura adversa e cá estão ainda, velhos mas vivos, a fazer aquilo que sabem e com a mesma atitude que os fez aqui chegar, a humildade. Todos foram embora da quinta, todos menos a tia Ana e o tio Carlos que cá morrerão e aí, sim, tudo ficará abandonado e por fim ruirá. Talvez a corte de colmo se safe por mais umas boas dezenas de anos, é que ali não entra pinga de água para fragilizar tal construção. Mas enquanto a cruel ceifeira não vem aqui para estes lados, continua a fazer-se o que se pode pois parar é morrer, sempre ouviram dizer. Agora apenas uma vaca que ainda vai dando um leitito natudo; o burro que muita carroça já puxou, agora aguenta-se porque não há coragem para se desfazerem dele; umas ovelhas que se vão criando para alimento, já que criar um porco como antes é trabalho a mais para as suas forças. As galinhas sempre vão dando ovos e carne, os coelhos desde que não venha o mal também são bem bons. O arado e a canga, quase a apodrecerem serviram para lenha e agora quando é preciso lavrar o lameiro vem o trator do tio Zé Capador, que os tempos já são outros. E já não é para grandes aventuras, chega uma horta generosa para irem tendo o que comer, pois o que ali é criado sabem que é de qualidade. Sabem eles e os filhos e netos que nos dias de festa lá vão aparecendo como podem e além de se refastelarem com aquilo que nas grandes cidades nem cheiram, a mala do carro é para regressar sempre carregada. São os pais a fazerem sempre pelos filhos até ao dia que seja mesmo impossível. É com alegria e muito contentamento que o fazem, poderem ser úteis e continuar a ajudar os seus, que a vida não está fácil para ninguém. Maior medo que a morte é o medo da viuvez, um deles ficar sem o seu pilar mais forte, a sua companhia de caminhada nos caminhos da vida, será mais certo também o inicio do fim da vida do outro. Mas também sabem que já viveram a sua fatia de vida e que ninguém cá fica para semente. Eles que já enterraram tantos, um dia não muito longínquo será a vez deles darem com as estremas da alma. Enquanto isso não acontece e enquanto as forças permitirem lá vão vivendo a sua vida sem dever nada a ninguém, com a sua característica humildade e apreciando cada vez mais o valor das coisas que os rodeiam. Aquele terreno que outrora já esteve cheio de gente em todas as colheitas, os animais que deambulam tranquilamente, o ritmo da natureza e das estações do ano. O barulho quase silencioso do vento no arvoredo nas tardes de Outono e o chilrear da passarada nas manhãs de Primavera, o cheiro da terra quente molhada das chuvas de Verão e o aroma do fumo das fogueiras no Inverno. E da janela da casa grande não se cansam de apreciar aquela construção dos ainda mais antigos que eles e ali permanece intocável, tão rara já nos dia de hoje mas que eles souberam tão bem preservar e desejariam que permanecesse ali para todo o sempre, como um símbolo dos que vencem pelo trabalho e pela humildade, aquela corte com telhado de colmo.

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