Os chapins cantam e
acompanham-me ao entrar na quinta. Apesar de ser outubro, o sol faz-se sentir
bem e sou brindado com uma manhã quente, em que sinto logo o perfume das romãs
maduras ao passar o portão. Do lado de dentro sou presenteado pelo belo quadro
daqueles que me esperam a preparar o “estaminé” indiferentes às galinhas e
patos que aleatoriamente ali passeiam debicando aqui e ali. Depois dos
cumprimentos tão autênticos como só as pessoas genuínas desprendidas do
materialismo sabem ter, reparo que o alambique, essa grande e bonita peça de
cobre já se encontra no lugar. Desloco-me até ele por entre festas ao apelativo
cachorro branco de manchas castanhas que late feliz e abana a cauda pedindo-me
apenas para ficar com ele ali a brincar o resto da manhã. O dia quente, dando
tréguas ao comum frio de outono nesta altura do ano, dá um toque primaveril à
quinta, que se movimenta cheia de vida e onde se sente o perfume da fruta da
época e das flores cultivadas para enfeitar as campas no dia 1 de novembro. No
alambique colocado estrategicamente por cima do que irá ser uma fogueira, é
colocada palha no fundo e é-me explicado que serve para o bagaço não agarrar ao
cobre, havendo também agora umas grelhas próprias para o efeito. Ainda assim,
se é para fazer o mais tradicional possível, será feito como antigamente, como
foi aprendido, como as anteriores gerações passaram e como as presentes irão
passar às futuras. Já faz tempo que o líquido se foi, agora só a parte sólida
do mosto resiste no lagar, o bagaço. O vinho que dele saiu já se encontra nas
pipas e nas cubas a maturar, depois da fermentação. O suave e agradável cheiro
a uva esmagada emana no ar ao ser colocado dentro dos baldes para por sua vez
ser colocado dentro do alambique, esta quase papa de cor vermelho escura. A
fogueira é acesa e o fumo dissipa-se pelo lugar ouvindo-se o crepitar da rama
seca que o acende. De seguida é posta a parte superior do alambique onde é
colocada água fria. Estas duas partes são seladas com uma massa de cinza para
não haver fuga de vapor durante o processo. O calor do lume aquece o bagaço que
por sua vez vai criar um vapor que sobe e ao chegar ao local onde está a água
fria vai condensar e tornar-se líquido. Por uma canalização interna, este
líquido sai para o exterior sendo já o produto que se deseja, a aguardente
bagaceira. Indiferente a toda esta rotina que se repete ano após ano, a
matriarca da família que presa pelo bem-estar da quinta e dos animais que cria,
segue também a sua própria rotina diária e já tem junto a si um molho de folhas
de couve que corta finamente para os galináceos, que acomoda como se fosse
parte da sua vida, pois como ninguém sabe a importância que os bichos têm no
sustento familiar, como pelos laços que com estes cria desde o seu nascimento,
numa relação de respeito onde terá sempre de dar para um dia receber. Enquanto
isso, um fio do néctar que agora vê a luz do dia começa a jorrar, saindo,
transparente, por uma cana finalizada por uma espiga de cevada que, serve
exclusivamente para guiar o fio para que caia certinho no funil adaptado e por
fim no garrafão. Não sou de ferro, portanto não seria de esperar que saísse
dali sem provar o bagaço acabadinho de fazer. Depois de recolhe-lo com um copo
diretamente do fio que jorra do alambique, inundo as narinas com o cheiro forte
mas agradável que não consigo descrever de outra forma se não: bagaço. As
papilas gustativas recebem-no com curiosidade, apreciam-no e empurram-no goela
a baixo. Tá provado e aprovado. O trabalho ainda não acabou. É preciso limpar o
local e deixa-lo impecável para outros trabalhos que na agricultura duram o ano
inteiro. Depois de despejada a água e de tirar a parte superior do alambique e
colocada a vasilha no atrelado, o trator dirige-se por entre patos, galinhas e
galos e com o cachorro alegre e barulhento para o terreno ali próximo para ser
despejado e lavado. Depois de ser extraído vinho e aguardente, o bagaço ainda
não acabou a seu percurso e é um regalo para os terrenos de cultivo, um ótimo
fertilizante natural. Agora sim, é tempo de dar descanso ao corpo com um
repasto com os sabores ricos das aldeias, com sabores dali mesmo, daquela
quinta que para esta família é riqueza maior, é parte integrante das próprias
vidas de quem dela cuida e lhe tira o sustento.
Alambiques há, mais ou menos
industriais, preparados para receber o bagaço de muitos produtores e realizar a
tarefa mais rápido. No entanto, ainda há quem resista a esta demanda
industrializada e prefira fazer as coisas à moda antiga, de forma caseira, no
seu próprio alambique, em sua casa, imortalizando toda uma tradição.
Muito bem Sr.Bruno
ResponderEliminarObrigado :)
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