Começa um galo
e depois outro e depois outro. É assim que ainda se desperta naquele pequeno local. Uns impulsionados pelos outros, os senhores de todas as capoeiras
fazem-se ouvir pela povoação que não tem mais de 15 casas espalhadas ao acaso,
muitas delas desabitadas. Uma alvorada que penetra por paredes de pedra,
pelas portas de madeira, pelo buraco do gato e ecoa no quarto do casal
fazendo-os notar que um novo dia começa a raiar, mais um dia em que as suas
vidas se fundem com o seu trabalho.
O
cheiro do café acabado de fazer paira por toda a cozinha enquanto repousa na
cafeteira à espera que a borra assente. O marido já sentado à mesa corta um
naco de pão que a mulher cozera no forno rente à casa ainda nessa semana, no
qual estende uma fatia de queijo. A lareira não apresenta vestígios de fogo nos
últimos tempos. Na verdade ainda agora começara o Outono e o frio ainda não se
fez sentir. A mulher olha pela janela e vê as gotas de chuva que de tão miudinhas
precisam de muita coragem para se precipitarem por entre as vistosas nuvens que
ocupam grande parte do céu. No horizonte um ligeiro nevoeiro passeia lento, baixinho, imprimindo uma aura de mistério na paisagem. Numa região montanhosa
daquelas o microclima é sempre esquecido por qualquer previsão meteorológica.
Não há estações do ano próprias para chover, para fazer sol, para fazer
nevoeiro. Mas as previsões meteorológicas não fazem qualquer falta aos
habitantes dali. Todos lá vivem há mais de sessenta anos, todos lá
vivem desde que nasceram. Conhecem como ninguém nunca conhecerá todas as
virtudes daquele local, todas as manhas daquele local, eles são aquele local.
A
chuva não cessa mas a persistência daquele casal também não. O seu trabalho é a
sua vida, a vida dos animais que criam, a vida que a sua horta ostenta, a vida
que transborda naquele lugar pintado pela mão do criador. É preciso levar as
vacas para o pasto, é preciso acomodar os porcos, os coelhos, as galinhas. O
marido abre a porta da rua e o gato preto e branco enfia-se imediatamente por
entre as suas pernas como quem já sabe que a mão grossa e rugosa do homem vai
largar algumas cascas de queijo. Por vezes algumas peles de chouriço, côdeas de
pão rijo ou courato de presunto. Este agarra e abre um guarda-chuva desbotado com uma
vareta partida e que em tempos fora preto. Desce as escadas de pedra, atravessa
o pátio e apeia-se pela rua de chão de pedras irregulares e escorregadias
naquele dia, acompanhado pelo bichano. Vai certamente ao quintal buscar alimento
para o vivo. A mulher, acompanhada pelo castro-laboreiro sempre atento às
redondezas, dirige-se em direção a um grande barracão construído em blocos de
cimento e abre o portão de chapa verde-escuro. Naquele
dia chuvoso, os telhados da aldeia estão desprovidos das costumeiras pombas
que esvoaçam em bando percorrendo as telhas musguentas. De quando em vez lá
aparece um montinho de penas a denunciar que o milhafre não se fez de rogado a
uma oportunidade predatória. Ao som do chamamento da mulher e à ordem da sua
verdasca, quatro grandes exemplares castanho-claros de chifres pontiagudos
precipitam-se para fora do curral. O caminho é o de todos os dias, o destino
também. O chão de pedra, construção romana dizem por ali, parece à primeira
vista dificultar a marcha dos bovinos. Nada mais do que imaginação impulsionada
pelo barulho dos cascos dos bichos no granito. O castro-laboreiro acastanhado
abre caminho soltando um ladrar aqui e ali. Está naquela família desde o
desmame e desde cedo acompanha o gado, guarda a casa e faz a companhia que só o
melhor amigo do homem é capaz de fazer. É fiel aos donos como só o melhor amigo
do homem é capaz de ser. O caminho rodeado por prados de erva verde e tenra,
apesar de longo, logo a meio quilómetro do barracão se abre para o seu lado
esquerdo para o terreno do casal, terreno já dos antepassados da senhora. Com
um capuz para evitar a água que cai lá do cimo e com galochas para evitar a
água estagnada cá em baixo, a mulher segue atenta à manada e não hesita em
utilizar a sua verdasca de pau de marmeleiro para corrigir o caminho desta se
necessário. Um muro de pedra delimita toda a sua extensão e permite que as
vacas permaneçam por ali sem fugir, sem necessidade de vigia. É hora da mulher
voltar a casa. Há mais vivo para acomodar. Há o almoço para cozinhar. Fazendo o
caminho inverso, a mulher e o grande cão acastanhado fogem da chuva sem na
realidade fugir de coisa nenhuma. Talvez ao entardecer, quando voltarem ali
para ir buscar os bovinos, a chuva tenha dado tréguas. Passam de novo por cima
da única ponte celta que resiste no país indiferentes à sua importância
histórica. Pouco depois saem de novo do caminho e entram no pátio onde dois
patos ensopados se deliciam com o tempo molhado que se faz sentir. O fiel amigo não pensa
duas vezes para se enfiar no espaço que lhe é reservado desde a sua chegada,
agora ampliado. A mulher caminha na direção das escadas de pedra que acolhem o
galinheiro sob si, estica o braço para as suas entranhas e recolhe três ovos.
Sobe as escadas, entra em casa e deixa a porta aberta.
Chega
agora o marido. Abóbora debaixo do braço esquerdo. Folhas de couve debaixo do
braço direito que com algum jeito segura também o guarda-chuva. O gato que preferiu a paz da
casa à caminhada chuvosa espera-o agora ao cimo das escadas. O homem atravessa
o pátio, pousa o alimento dos animais ao fundo das escadas, sobe-as e entra
porta a dentro com o bichano a enrolar-se-lhe por entre as penas deixando a
porta aberta. Na realidade aquela porta só se voltará a fechar quando se fechar
o dia de trabalho. Mas o dia só agora começou...
Dedico esta peça à aldeia de
Portos e à respetiva Branda de Portos, Castro Laboreiro, concelho de Melgaço, a qual
possui a única ponte celta do país, sendo uma das duas ainda existentes na Península
Ibérica. Apesar da chuva realmente não ter cessado durante a visita, gostei
muito de visitar o lugar onde me inspirei para escrever este pequeno texto.
(À falta de câmara fotográfica,
a fotografia desta história foi captada com o smartphone Samsung Galaxy S3 e
editada exclusivamente no mesmo).
Fotografia e Texto: Bruno Andrade
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