quarta-feira, 23 de outubro de 2019

O Ciclo Dourado do Milho

Uma mão cheia agarra os grãos que pode para lançar ao ar de odor silvestre para depois caírem na terra antes lavrada e que em breve se vestirá de verdes canudos de folha larga. Da colheita do ano anterior, guardou-se o milho necessário para preparar uma nova colheita. Talvez seja o milho um dos produtos da terra que mais atenção requer dos homens e mulheres que antigamente e ainda hoje se esforçam por pintar as paisagens rurais com um bonito verde por lanteiros fora, aqui e além. Depois da sementeira, já com o tempo quente, a primeira sacha. Por entre os pequenos rebentos a terra tem de ser remexida para evitar que as ervas daninhas tomem conta do terreno. Leva tempo pois, e como já estamos no tempo quente, chega a altura das regas. Maioritariamente já há alguma modernização nesse sentido como é o caso dos aspersores, os repuxos que à força de motor cobrem na totalidade o terreno a regar. Ainda assim quem tem mais persistência e tem água na presa, com ajuda da gravidade, faz a rega à moda antiga, com o sacho a guiar o liquido refrescante que dá um novo alento à cultura.
É certo que quem se vê com tal tarefa de labuta diária, tudo o que pensa é levar a cabo a missão da melhor forma possível. Contudo, quem tem o privilégio de poder assistir a esta atividade sazonal pode contemplar uma autêntica pintura rural cheia de cores e sentimentos. O agricultor como figura central duma história tão antiga como o tempo. E não só uma história com imagens mas também uma história com sons, cheiros e tato. Um quadro que sai da moldura e no qual mergulhamos e nos deixamos levar pela imaginação. Ali sentados naquele penedo, os pardais em azáfama na árvore por cima de nós chilreiam belas melodias. O melro que sem dar por nós voa até ao ninho escondido por entre pedras num muro para alimentar a prole com a minhoca que achou perto da presa. O milhafre lá no alto a fazer o cerco a uma qualquer lagartixa esparramada ao sol que absorve o calor no granito duma lage. A leve brisa suficiente para fazer dançar o canavial verde esperança. O penedo por baixo de nós no qual pousamos as mãos e sentimos a rugosidade milenar. O cheiro a fruta madura duma tarde de Verão no campo. O pêssego que arrancamos da árvore logo ali, trincamos, saboreamos e o suco doce que nos escorre pelo queixo. A dança da natureza que nos envolve e nos torna parte dela. A tarefa não são dois dias, a tarefa prolonga-se no tempo desde a Primavera até ao fim do Verão. Até chegar a altura de cortar as bandeira para dar corpo à espiga. E então as canas secam, ficam amareladas, o milho está pronto a ser cortado. Ao deslize da gadanha, o sábio conhecedor da terra e das culturas transforma o chão num tapete dourado que em breve encherá o carro de bois e será levado para a moita, para a desfolhada. E aqui a memória do antigamente toma-nos outra vez de assalto. Ai as desfolhadas à moda antiga. Comunidade e união numa só atividade. Toda a malta junta em algazarra em redor das canas e folhas para sacar as maçarocas douradas, à tardinha ou à noite, com histórias e cantorias e até olhares que mais tarde darão em casamento. E o milho rei? Se na desfolhada houvesse a espiga avermelhada então quem a encontrasse lá teria a sorte de poder beijar todos os presentes, uns com mais vontade que os outros tá claro. E eis que depois de soltos dos carolos, os grãos dourados precisam ainda de ficar bem secos. Nas lajes e eiras comunitárias aproveitando o sol que ainda brilha com intensidade, estende-se o milho logo pela manhã e junta-se pela tardinha dia após dia. Estes espaços de enorme rocha granítica escura, no final do Verão tornam-se dourados e acrescentam cor às pequenas aldeias que vivem à velocidade da natureza. Rodos de madeira conduzidos por mão calejadas espalham o milho formando um lençol que cobre a lage enquanto vassouras feitas de giesta juntam a colheita para não receberem as geadas noturnas que se começam a fazer sentir, até que por fim o ciclo está completo e a ultima varredela é para guardar nas arcas de madeira que os antigos nos deixaras como mostram os buracos do caruncho. E há que tomar todas as medidas pois estamos no campo, os roedores do costume fazem todos os possíveis para poderem deitar o dente ao produto que tanto trabalho deu para ali ter. Enquanto isso, como tudo o que a natureza nos dá não se deve estragar e tem utilidade, as canas secas tanto estrumam as lojas dos animais assim como servem para alimenta-los. Em molhos carregados às costas lá vão sendo utilizados conforme é preciso.
Ter a arca cheia para mais um ano ainda requer cuidado no seu uso pois o seu destino tem as mais variadas utilizações. Além de ter de sobrar o suficiente para mais uma sementeira no ano vindouro, ainda há que alimentar as galinhas, fazer farinha e se der para vender uma parte são mais uns trocos que entram na algibeira. É um ciclo que começa e acaba consoante a natureza, o trabalho e a persistência destes homens e mulheres o permite.
É o ciclo dourado do milho.

















Veja como do milho se faz a farinha num moinho de água que resiste ao tempo neste link:



Veja como da farinha se faz o pão caseiro no forno à moda antiga neste link:


1 comentário:

  1. Atado o saco de serapilheira à cintura com o grão de semente de rara qualidade de milho, era tão catraio que nem me lembro dos nomes, parecia que abençoava o lameiro à bruta, atirava para todo o lado e ficava a olhar para trás, volta nao volta para os sulcos rasos do arado de pau que levava na frente uns ramos de loureiro e por detrás da rabiça, viria a grade com ramos das giestas para aplainar.
    Era tempo de sementeira, havia que esperar do tanto para fazer, coisa que não demorava, logo ali estava a sacha, mondar as ervas maleitas e regar.
    Isto o que mais eu gostava, apanhar as poças de sortes, às vezes três no mesmo dia e havia que as guardar...que bem sabia no pé descalço, bricando com a sachola para cortar nas velgas e encaminhar a "menina" para a outra a seguir. Era a parte bonita antes do que viria depois, ele, o milho já maduro, dava muito que fazer, gostava de cortar as crutas, aquelas bem engrossadas e com boas espigas por baixo que estendiam nas bordas do lameiro para secarem...ouro para os animais ou quem tais não tivessem, vendiam a bom preço as fachas. Havia que ter cuidado co a chuva, pois cruta molhada, nao valia nada, apodrecia.
    Depois a escanada, uma festa, o moinho das sortes, o pão e sorte para a outra colheita.
    O milho sempre foi o Rei!

    ResponderEliminar

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...