terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

O Ciclo do Porco

Há um novo habitante na quinta. Um balde de comida e umas verduras denunciam que a loja está de novo ocupada. Este ciclo de relação homem/porco inicia exactamente no momento em que um leitão é comprado e trazido para a quinta a fim de ser criado. Uma relação que não é curta, dado o período de tempo necessário para que o animal atinja o tamanho e peso ideal. Embora o desfecho desta relação esteja traçado, há em toda a etapa de criação do suíno um respeito mútuo admirável. O respeito do animal pela mão que o alimenta, assim como o respeito do homem pelo fruto que colherá. A alimentação é composta pelos mais variados produtos hortícolas, desde os nabos às couves, passando pela batata e pelo milho. Ora crus ora cozidos nas panelas de ferro aquecidas pelo lume que nas tardes de Inverno ajudam a espantar o frio. Na verdade, este cozido espalha pelo ar um odor agradável, capaz de criar água na boca a qualquer humano. São vários meses em que o dono dá todos os dias um pouco de si, para um dia ter um todo do animal.
            Há uma altura em que, como parte natural de todo um processo, chega o momento da matança. Uma actividade que cultiva ainda o cariz familiar. São várias as ações a executar e que requerem várias pessoas para que nada falhe. Logo pela fresca da manhã a agitação já se nota e o banco da matança já se encontra pronto para receber a principal personagem do dia. Trazido para fora da loja, o porco é encaminhado até ao banco e à força de braços de vários homens é colocado lá em cima. O momento chave do dia chega na altura em que a tacto, é descoberta a artéria que a longa lâmina penetra. Momento em que o olhar do homem e do animal se cruzam pela última vez. Mas desta vez com mais intensidade que nunca. Os olhos do animal que perece encontram os olhos do homem, que apesar da sua acção imediata, o volta a olhar com todo o respeito que lhe merece. Assim como com o agradecimento por mais uma etapa e objectivos cumpridos. O último suspiro foi dado.
            Antigamente era utilizada palha a arder e uma pedra rugosa para queimar o pelo e extrair a camada superficial da pele e unhas. Actualmente recorre-se a um maçarico a gás para esse efeito. Uma mangueirada de água deixa por fim o animal limpo e pronto para a desmancha. É transportado para um local interior onde é pendurado e a partir daí é desmanchado por alguém com o conhecimento necessário da anatomia do animal. Todo o processo tem de correr bem, sem nenhuma incisão nos órgãos que poderiam extravasar e prejudicar ou até estragar a carne. À espera dos intestinos, também chamados de tripas, estão já as mulheres encarregues de os lavar e por a secar, pois estes são parte fundamental na produção dos enchidos. Parte do sangue aproveitado no momento da matança está agora coalhado, dividindo-se facilmente em pequenas partes que se colocam numa panela de água que já ferve na fogueira. Depois de cozido são as famosas papas de sarrabulho. Outra parte foi deixada escorrer para um alguidar com pão esmigalhado, pois as morcelas vão ser o primeiro enchido a fazer. À hora do almoço não poderia ser de outra forma. Prova-se a carne fresquinha apenas com umas areias de sal e colocadas a grelhar no brasiol, emanando um cheiro que não deixa ninguém indiferente. É hora de dar descanso ao corpo, alimento ao estômago e convívio à alma. O corpo do animal já sem as entranhas fica por hoje pendurado para que a carne fique bem escorrida do sangue. Além da carne para guardar, será escolhida também carne para os enchidos e um presunto ou dois para meter na salgadeira. Chega a última etapa quando acima de uma fogueira são penduradas as chouriças, farinheiras, morcelas e salpicões. Vão estar algumas semanas no fumeiro, até atingirem o ponto ideal para serem consumidos e guardados.
Todos os aspectos envolventes no ciclo do porco fazem desta actividade, uma actividade a médio e longo prazo, uma actividade transversal a todas as estações do ano e acima de tudo, uma actividade de gente trabalhadora, dedicada e respeitadora dos valores culturais e humanos. E depois disto tudo...
            … Há um novo habitante na quinta…


















2 comentários:

  1. Ciclo da natureza que manteve tantas gerações de portugueses. Bonita reportagem que retrata em 2016 a vivência das nossas mais profundas raizes e tradições.
    Cumprimentos aos protagonistas e parabéns Bruno
    Carlos

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