domingo, 5 de janeiro de 2014

Viagem Medieval

1348
   Ao aproximar-me das muralhas sinto logo o ambiente de festa. Arrasto-me com a espada à cintura pela grande porta quando o som das cornetas abafa o pedido clemente do pedinte que debaixo dos trapos sujos e ensanguentados não esconde a sua condição de leproso. Uma agitação invulgar toma conta do reino e aqui no condado festeja-se um feito com duas centenas de anos, a conquista muito esforçada do castelo aos mouros por El Rei D. Afonso Henriques. Hoje há visita d'El Rei D. Afonso IV e foram tomadas todas as providências para o receber. Há torneios de luta, há caçadas, há música, há comércio. Não posso deixar de reparar que o habitual cheiro a estrume e a ferro forjado se mistura hoje com o aroma da carne assada dos porcos que rolam no espeto por cima de brasas. Nas tendas os artesãos impingem os seus produtos de pele, couro e ferro. Um suave cheiro a incenso atravessa-me os sentidos quando passo na tenda da cigana que lê a palma da mão decifrando passados incertos e deita as cartas sobre a mesa prometendo previsões futuristas acertadas. E lá está ela nas suas veste pretas compridas enfeitada com lentejoulas a lançar-me o olhar sedutor e misterioso na tentativa de amealhar mais uns reis. Alheio-me à sua investida e continuo a minha caminhada em direcção ao castelo que já vislumbro por entre tendas e toldos, fumos e corpos apressados. À minha direita a algazarra de meia dúzia de homens em torno de uma mesa empunhando copos de barro preenchidos de vinho não disfarça que hoje é dia de festa. Logo atrás de si um comerciante dá voltas ao espeto onde um porco vai sendo cortado em lascas e distribuído pelas mesas onde há já quem as espera. O meu corpo aquece por baixo desta roupa grossa pelo que paro logo aí para saciar a minha sede com uma bebida que me dizem ser produto da fermentação de cevada e trigo. Fico rendido ao seu sabor que me arranha a garganta e peço para voltarem a encher o copo de barro tosco. Breves minutos ali parado sozinho bastam para as mulheres da vida que por ali andam lançarem investidas sobre mim. Com palavras maliciosas de desejo e a revelação de parte dos seios alvos tentam arrastar-me para o palheiro mais próximo, mas a minha missão ali é outra pelo que não me resta senão ignorar as meretrizes. Talvez peça para voltar a encher o copo. Ou talvez não, diz-me a minha cabeça. Deixo passar o burro que puxa uma carroça com pipas de vinho, certamente para distribuir pelas tendas e arranco. Aumenta gradualmente de volume um som que me agrada. A gaita-de-foles domina e orienta o acompanhamento da pandeireta, do bombo e da guitarra mourisca. Um grupo de pessoas dança ao ritmo da melodia alegre e contagiante que estes alegres músicos lhes proporciona. Vestidos coloridos enchem-se de volume a cada rodopio, a roda avança, os cavalheiros pausam e as damas repetem o rodopio. Não consigo esconder um sorriso e avanço. A cada passo mais um artesão. Um ferreiro aquece um ferro comprido ainda tosco nas brasas que atiça com o fole para de seguida o pousar na bigorna e martelar com toda a força. Talvez uma bela espada surja no final daquele processo. Logo a seguir, um artesão do couro cose aquilo que mais tarde irão ser uns belos sapatos, não ao alcance de todos mas só para quem os conseguir comprar. O cheiro a cozinhado, talvez um ensopado de carne e legumes, desperta-me a atenção para as panelas de ferro aquecidas pelo fogo de uma fogueira que é atiçada por uma mulher. O aroma do guisado penetra nas minhas narinas tão intenso que pela primeira vez não consigo esconder a fome que a caminhada até ao condado me causara. Desta vez não resisto, sento-me logo numa mesa ali perto e peço um pedaço de coelho assado, um pão acabado de sair do forno e um copo de vinho. Em poucos minutos estou revigorado e prossigo a marcha. Um aldeão barbudo passa por mim conduzindo dois cães, o que me faz pensar que uma caçada estará para acontecer. E é isso que me confirma logo de seguida um falcoeiro com a sua ave de rapina em punho pronta também para perseguir a presa. Finalmente chego ao castelo e abordo um guarda apresentando-me. Parece que cheguei na hora do torneio e sou convidado a dirigir-me para a liça. Caminho até lá e sou quase abalroado por um corpo adulto com atitude de criança. Mais um louco deste mundo, um pobre coitado que corre sem mais nem porque e que a malicia das suas atitudes se confunde com a inocência da sua demência.
    Com alguma dificuldade penetro na confusão de gente até encontrar um lugar na bancada que me permita disfrutar das lutas que vão acontecer. O torneio oferecido a El Rei conta com a sua presença na bancada principal, ladeado pela Rainha, por nobres, cavalheiros e donzelas que compõem a corte. O povo rejubila com as reais saudações e venera os seus governantes. O mestre da liça apresenta os desafios, os lutadores, as regras e depois de pedida ordem a El Rei dá início aos duelos para alegria dos presentes. Apresentam-se os cavaleiros e gritos ensurdecedores apoiam quem preferem. Feitas as honras, cada cavaleiro no extremo da liça avança a toda a velocidade à ordem do mestre. Em cima dos corcéis com a vara em riste encontram-se a meio caminho mas desta vez nenhum foi eficaz. Repete-se a investida que à segunda termina com um dos cavaleiros embrulhado no pó do chão pela vara certeira do adversário. O público reage com gritos de apoio ou apupos e saúda o cavaleiro vencedor, que recebe a saudação do seu Rei. O mestre da liça anuncia agora a luta corpo a corpo apresentando os adversários que empunham as suas espadas e à ordem de começo desferem logo golpes de ataque e defesa. A luta é renhida pois ambos os lutadores treinam arduamente. Ataque de um, defesa do outro e vice-versa. O cansaço apodera-se de ambos e é crucial para o golpe final que dá a vitória a um deles, o que mais energia demonstrar. O som metálico do choque das lâminas domina a liça e prende a atenção de todos, até que por fim, o golpe de misericórdia. Com o derrotado no chão, o povo saúda o vencedor, assim como o seu Rei. Agora é a vez dos arqueiros mostrarem a sua perícia. É muita a distância que os separa dos alvos mas isso não impede os melhores de tiros certeiros. O zumbido das flechas a rasgar o ar culmina na estrutura de palha que sustenta o alvo. É com agrado que vejo que estamos muito bem servidos no que respeita a armamento moderno.
    Com o fim do torneio o povo abandona a liça e eu não sou excepção. Movo-me novamente em direcção ao castelo e não posso deixar de reparar numa criança que aprende o ofício de seu pai, logo ali ao lado da gaiola pendurada agora vazia, mas que com certeza muitas almas já aprisionou, onde o sofrimento só acabou quando o criador as veio resgatar do mundo terreno. Depois de me apresentar novamente ao guarda do castelo sou convidado a entrar e a seguir um dos pajens que espera os convidados. Mal penetro no salão real o ar de festa envolve-me sem pedir autorização. Paredes e tectos enfeitados, empregados sempre em azáfama e músicos lá ao fundo trauteiam um belo requiem. No extremo oposto dezenas de pessoas olham para mim. Aproximo-me com firmeza e sou recebido pelo semblante afável d´El Rei. A música para, o silêncio instala-se, aproximo-me do real governante e à sua frente deito um joelho em terra. Ouço o som metálico do desembainhar da espada acompanhando breves palavras reais. Sinto o peso da lâmina pousar-me num ombro e depois no outro. Olho El Rei D. Afonso IV que me parabeniza. A música recomeça, os bobos dançam e saltam, a corte festeja.
    Hoje é o dia em que fui nomeado cavaleiro real.






































Nota:
As fotografias que compõem este documentário foram captadas no “Mercado Medieval de Óbidos”. A sua captação só foi possível graças ao Posto de Turismo que me cedeu a credencial de imprensa para fotografar o evento. Um muito obrigado.
As datas e nomes apresentados são reais, tomando como ponto de referência a conquista de Óbidos aos mouros no ano de 1148.

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