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Ao aproximar-me das muralhas sinto logo o ambiente de
festa. Arrasto-me com a espada à cintura pela grande porta quando o som das
cornetas abafa o pedido clemente do pedinte que debaixo dos trapos sujos e
ensanguentados não esconde a sua condição de leproso. Uma agitação invulgar
toma conta do reino e aqui no condado festeja-se um feito com duas centenas de
anos, a conquista muito esforçada do castelo aos mouros por El Rei D. Afonso
Henriques. Hoje há visita d'El Rei D. Afonso IV e foram tomadas todas as
providências para o receber. Há torneios de luta, há caçadas, há música, há
comércio. Não posso deixar de reparar que o habitual cheiro a estrume e a ferro
forjado se mistura hoje com o aroma da carne assada dos porcos que rolam no
espeto por cima de brasas. Nas tendas os artesãos impingem os seus produtos de
pele, couro e ferro. Um suave cheiro a incenso atravessa-me os sentidos quando
passo na tenda da cigana que lê a palma da mão decifrando passados incertos e
deita as cartas sobre a mesa prometendo previsões futuristas acertadas. E lá
está ela nas suas veste pretas compridas enfeitada com lentejoulas a lançar-me
o olhar sedutor e misterioso na tentativa de amealhar mais uns reis. Alheio-me
à sua investida e continuo a minha caminhada em direcção ao castelo que já
vislumbro por entre tendas e toldos, fumos e corpos apressados. À minha direita
a algazarra de meia dúzia de homens em torno de uma mesa empunhando copos de
barro preenchidos de vinho não disfarça que hoje é dia de festa. Logo atrás de
si um comerciante dá voltas ao espeto onde um porco vai sendo cortado em lascas
e distribuído pelas mesas onde há já quem as espera. O meu corpo aquece por
baixo desta roupa grossa pelo que paro logo aí para saciar a minha sede com uma
bebida que me dizem ser produto da fermentação de cevada e trigo. Fico rendido
ao seu sabor que me arranha a garganta e peço para voltarem a encher o copo de
barro tosco. Breves minutos ali parado sozinho bastam para as mulheres da vida
que por ali andam lançarem investidas sobre mim. Com palavras maliciosas de
desejo e a revelação de parte dos seios alvos tentam arrastar-me para o
palheiro mais próximo, mas a minha missão ali é outra pelo que não me resta
senão ignorar as meretrizes. Talvez peça para voltar a encher o copo. Ou talvez
não, diz-me a minha cabeça. Deixo passar o burro que puxa uma carroça com pipas
de vinho, certamente para distribuir pelas tendas e arranco. Aumenta
gradualmente de volume um som que me agrada. A gaita-de-foles domina e orienta
o acompanhamento da pandeireta, do bombo e da guitarra mourisca. Um grupo de
pessoas dança ao ritmo da melodia alegre e contagiante que estes alegres músicos
lhes proporciona. Vestidos coloridos enchem-se de volume a cada rodopio, a roda
avança, os cavalheiros pausam e as damas repetem o rodopio. Não consigo
esconder um sorriso e avanço. A cada passo mais um artesão. Um ferreiro aquece
um ferro comprido ainda tosco nas brasas que atiça com o fole para de seguida o
pousar na bigorna e martelar com toda a força. Talvez uma bela espada surja no
final daquele processo. Logo a seguir, um artesão do couro cose aquilo que mais
tarde irão ser uns belos sapatos, não ao alcance de todos mas só para quem os conseguir
comprar. O cheiro a cozinhado, talvez um ensopado de carne e legumes, desperta-me
a atenção para as panelas de ferro aquecidas pelo fogo de uma fogueira que é atiçada
por uma mulher. O aroma do guisado penetra nas minhas narinas tão intenso que
pela primeira vez não consigo esconder a fome que a caminhada até ao condado me
causara. Desta vez não resisto, sento-me logo numa mesa ali perto e peço um
pedaço de coelho assado, um pão acabado de sair do forno e um copo de vinho. Em
poucos minutos estou revigorado e prossigo a marcha. Um aldeão barbudo passa
por mim conduzindo dois cães, o que me faz pensar que uma caçada estará para
acontecer. E é isso que me confirma logo de seguida um falcoeiro com a sua ave
de rapina em punho pronta também para perseguir a presa. Finalmente chego ao
castelo e abordo um guarda apresentando-me. Parece que cheguei na hora do
torneio e sou convidado a dirigir-me para a liça. Caminho até lá e sou quase
abalroado por um corpo adulto com atitude de criança. Mais um louco deste
mundo, um pobre coitado que corre sem mais nem porque e que a malicia das suas
atitudes se confunde com a inocência da sua demência.
Com alguma dificuldade
penetro na confusão de gente até encontrar um lugar na bancada que me permita
disfrutar das lutas que vão acontecer. O torneio oferecido a El Rei conta com a
sua presença na bancada principal, ladeado pela Rainha, por nobres, cavalheiros
e donzelas que compõem a corte. O povo rejubila com as reais saudações e venera
os seus governantes. O mestre da liça apresenta os desafios, os lutadores, as
regras e depois de pedida ordem a El Rei dá início aos duelos para alegria dos
presentes. Apresentam-se os cavaleiros e gritos ensurdecedores apoiam quem
preferem. Feitas as honras, cada cavaleiro no extremo da liça avança a toda a
velocidade à ordem do mestre. Em cima dos corcéis com a vara em riste
encontram-se a meio caminho mas desta vez nenhum foi eficaz. Repete-se a
investida que à segunda termina com um dos cavaleiros embrulhado no pó do chão
pela vara certeira do adversário. O público reage com gritos de apoio ou apupos
e saúda o cavaleiro vencedor, que recebe a saudação do seu Rei. O mestre da
liça anuncia agora a luta corpo a corpo apresentando os adversários que
empunham as suas espadas e à ordem de começo desferem logo golpes de ataque e
defesa. A luta é renhida pois ambos os lutadores treinam arduamente. Ataque de
um, defesa do outro e vice-versa. O cansaço apodera-se de ambos e é crucial
para o golpe final que dá a vitória a um deles, o que mais energia demonstrar.
O som metálico do choque das lâminas domina a liça e prende a atenção de todos,
até que por fim, o golpe de misericórdia. Com o derrotado no chão, o povo saúda
o vencedor, assim como o seu Rei. Agora é a vez dos arqueiros mostrarem a sua
perícia. É muita a distância que os separa dos alvos mas isso não impede os
melhores de tiros certeiros. O zumbido das flechas a rasgar o ar culmina na
estrutura de palha que sustenta o alvo. É com agrado que vejo que estamos muito
bem servidos no que respeita a armamento moderno.
Com o fim do torneio o povo
abandona a liça e eu não sou excepção. Movo-me novamente em direcção ao castelo
e não posso deixar de reparar numa criança que aprende o ofício de seu pai,
logo ali ao lado da gaiola pendurada agora vazia, mas que com certeza muitas
almas já aprisionou, onde o sofrimento só acabou quando o criador as veio
resgatar do mundo terreno. Depois de me apresentar novamente ao guarda do
castelo sou convidado a entrar e a seguir um dos pajens que espera os
convidados. Mal penetro no salão real o ar de festa envolve-me sem pedir
autorização. Paredes e tectos enfeitados, empregados sempre em azáfama e
músicos lá ao fundo trauteiam um belo requiem.
No extremo oposto dezenas de pessoas olham para mim. Aproximo-me com firmeza e
sou recebido pelo semblante afável d´El Rei. A música para, o silêncio
instala-se, aproximo-me do real governante e à sua frente deito um joelho em
terra. Ouço o som metálico do desembainhar da espada acompanhando breves
palavras reais. Sinto o peso da lâmina pousar-me num ombro e depois no outro. Olho
El Rei D. Afonso IV que me parabeniza. A música recomeça, os bobos dançam e
saltam, a corte festeja.
Hoje é o dia em que fui nomeado cavaleiro real.
Hoje é o dia em que fui nomeado cavaleiro real.
Nota:
As fotografias
que compõem este documentário foram captadas no “Mercado Medieval de Óbidos”. A sua captação só foi possível graças ao Posto de Turismo que me cedeu a
credencial de imprensa para fotografar o evento. Um muito obrigado.
As datas e
nomes apresentados são reais, tomando como ponto de referência a conquista de
Óbidos aos mouros no ano de 1148.
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