A tia Júlia levantava-se ao romper da aurora para abrir às galinhas. Desajeitadas, lá saiam
elas pela porta da capoeira e rapidamente se espalhavam pelo pátio esgravatando
aqui e ali, bicando umas areias e uma ou outra erva daninha que sobrevivera à
astúcia herbicida das poedeiras no dia anterior. O ranger das dobradiças
ferrugentas que sustentam a velha porta de madeira de carvalho anunciava que a
tia Alice estava prestes a sair de casa.
-
Bom dia vizinha - diz a tia Alice mal avistou a tia Júlia. - Então muitos ovos
hoje?
-
Não vi, ainda está uma galinha a pôr - respondeu a tia Teresa a olhar para a
ave aninhada no feno a cacarejar. - Tenho é de arranjar um galo pra ver se
ponho uma destas a chocar uma ninhada.
-
Realmente já há muito tempo que não tem uns pintainhos a passear no pátio. Mas
agora o seu neto dava cabo deles com a bola. Eu vou-me à quinta acomodar os porcos e os coelhos, aproveito e trago uma couvita pra cozer com umas batatas
pro almoço. O meu Manel é só batatas, só batatas, que hei-de fazer... - arrematou a
tia Alice ao afastar-se.
-
Vou fazer o café que daqui a nada a minha Fátima vem-me cá deixar o garoto. Até
logo.
Naquele
pátio partilhado por quatro casas, era comum os vizinhos trocarem os seus
produtos sem terem de combinar. Quando alguém chegava das suas terras trazia
legumes ou ovos em maior quantidade. Era assim que todos faziam, era assim que
todos tinham recebido os princípios de gerações anteriores e procuravam
transmiti-los aos seus descendentes. Ali partilha-se, ajuda-se o próximo,
ninguém sabe o que queria dizer a palavra "solidariedade" mas todos a
praticam naturalmente.
A
tia Augusta aparecia sempre ao meio da manhã para regar o canteiro à porta da
sua casa. Quem ali passava não ficava indiferente ao cheiro das roseiras bem
cuidadas e dos cravos brancos. "Tenho de ter material suficiente para o
Dia de Todos os Santos", dizia ela saudosa do seu marido que partira para
o descanso eterno havia já alguns anos.
Por
volta do meio-dia a buzina estridente a ultrapassar de longe os decibéis
permitidos por lei não deixava dúvidas que o padeiro tinha chegado. O Aníbal
chegava com pressa, saltava do lugar de condutor e abria a porta lateral da
carrinha com pressa e aviava os clientes com pressa. Mas no meio desta pressa
toda e por entre um pão de centeio, duas broas de milho e meia-dúzia de
papo-secos havia sempre lugar para as notícias da aldeia circularem. "O
javali estragou o milho não sei a quem, o fulano discutiu com cicrano por causa
das extremas, o padre anda muito amigo da filha de tal pessoa". Contava as
novas com um olho no pão outro nos trocos e ouvia outras novidades já com um pé
no chão outro na carrinha pronta para zarpar.
-
André, anda almoçar - gritava a tia Júlia ao ver o petiz especado no dentro do
galinheiro. - Que é que tás a fazer aí dentro?
-
O tio Carlos disse que se eu quisesse que a barba me crescesse mais rápido tinha
de dormir uma noite com as galinhas - respondeu o garoto com cara de quem
esperava ou não aprovação da avó.
-
Rais palira o teu tio, ainda é pior do que tu. Vai lá lavar as mãos e vai pra
mesa que o avô tá à espera.
À
tarde as vizinhas juntavam-se no pátio. Falavam das eleições que aí vinham, dos
namoros na aldeia, dos doentes, do cultivo, dos animais. Debaixo da parreira
das videiras debulhava-se o feijão de quem o tinha e escolhia-se o bom para
guardar e o furado para deitar aos porcos. Havia quem fosse à venda da tio João Lopes aviar a mercadoria e ver se chegou correio. No pátio o garoto estava
sentado a conduzir o carrinho numa estrada que a sua imaginação desenhara na
terra. O Finote, o cão já velhote da tia Augusta fazia-lhe companhia deitado ao
seu lado. Conhecia o miúdo desde que nasceu e criou um laço de protecção e
fieldade.
-
Então André, não vais pra casa? Daqui a nada tá de noite - dirigiu-se-lhe a tia
Alice ao pé da porta de carvalho de sua casa cujo peso se preparava para fazer
ranger de novo as velhas dobradiças, com alguns ramos secos na mão para atear o
lume.
As
galinhas já estavam na capoeira pelo que a tia Júlia só teve de confirmar se
estavam todas e fechar a porta. Agarrou carinhosamente no garoto pela mão e
levou-o à mãe que tinha chegado para o levar. Entrou em casa e fechou a porta
atrás de si. O Finote ficou pelo pátio por mais algum tempo a apreciar a calma
e a paz que a sua idade pedia. Com o cair da noite acenderam-se as luzes dentro
das casas. As chaminés fumegavam o negrume da combustão em direcção ao céu onde
nuvens passageiras marcavam presença. O Finote por fim levantou-se e caminhou
até casa onde sabia que estava uma lareira acesa, à frente da qual iria
continuar o seu descanso até dormitar.
O
pátio estava agora vazio, contrastando com as vivas noites de Verão quando os
vizinhos fazem serão na rua a desfrutar do ar nocturno fresquinho. As luzes no
interior das casas acabaram por se apagar, ficando agora o pátio iluminado à
luz fraca e intermitente de um candeeiro público que não tarda iria apagar-se
também. Um gato cinzento patrulhava os telhados na escuridão silenciosa da
madrugada. Em breve chegará a aurora. Amanhã cedo começará um novo dia no
pátio.
Muito bonito! Adorei!
ResponderEliminarMuito obrigada pelas palavras.
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