domingo, 4 de novembro de 2012

Tosquia - A Origem da Lã

        A tarde de primavera estava quente. Fazia uma viagem em boa companhia para fotografar animais silvestres. O meu cicerone, conhecedor da zona conduzia-me na sua carrinha por caminhos de terra batida deixando para trás uma nuvem de pó quando passámos por um grande curral onde havia movimento. Dois irmãos, os últimos pastores daquela aldeia soube depois, eram conhecidos do meu guia pelo que parou para lhes falar. Bastou-me ouvir as suas primeiras palavras para perceber que estava perante duas pessoas como quase não há hoje em dia. Os seus olhos transpareciam bondade, a suas vozes entoavam palavras de quem não vê maldade no mundo, uma humildade e educação que me deixaram rendido àquelas duas pessoas órfãos de pai e mãe desde cedo e que desde cedo foram obrigadas a cumprir os deveres que a vida lhes reservara.
        Um convite insistente para bebermos um copo de vinho de produção dos próprios foi o mote para sairmos da carrinha e os acompanharmos ao curral. Em conversa disseram-nos qual o motivo da agitação de hoje na sua propriedade. Estavam à espera dos tosquiadores, era dia para tosquiar as ovelhas. Cerca de cinquenta cabeças de gado iriam hoje ficar despidas da lã já acumulada havia um ano. As ovelhas pastavam calmamente junto ao curral acompanhadas por algumas cabras e cabritos. Dali viam-se serras verdes e terrenos que a Primavera começara a enfeitar, videiras prontas para receber o fruto e árvores salpicadas de cores. Com o paladar ocupado pelo sabor frutado do vinho e as narinas inundadas pelo seu aroma fresco, a conversa desenrolou-se o tempo suficiente para lhes contar com que intuito eu estava ali e para me dizerem que ainda faltavam umas horas para a chegada dos tosquiadores. Antes de lhes perguntar se podia mais tarde fotografar a tosquia, eles próprios se anteciparam às minhas palavras. Desta forma despedi-me com um até já e concentrei-me no meu primeiro plano.
        Algum tempo depois, no meu regresso ao local reparo que mais pessoas se encontravam ali, pessoas suas amigas que se dispuseram a ajuda-los neste dia atarefado. Naquela aldeia como em todas as outras aldeias rurais o sentido de solidariedade encontra-se na porta ao lado e estende-se pela rua fora. A entreajuda é a moeda transaccionada, a moeda que mais valor tem por estes lados. Rapidamente conheci os presentes e o facto de estar ali para fotografar revelou-se numa grande receptividade por parte destes, ficando bastante agradados com isso. O convívio tornou-se agradável e sentia-me completamente em casa. O convite que recebi para no final ficar para a refeição jamais poderia ser recusado. Aproveitei como sempre para fazer o que faço sempre nestes casos, aprender tudo o que dali podia aprender. Entretanto chegaram os dois tosquiadores e era tempo de iniciar manobras. A primeira fase foi reunir todas as ovelhas num pequeno espaço cercadas por uma rede alta. Como as ovelhas já se encontravam juntas, o que tinha de ser feito era aos poucos ir diminuindo a área para ficarem num espaço reduzido para terem pouca mobilidade a fim de facilitar o processo da sua apanha. A movimentação em torno desta tarefa desencadeou uma notória agitação nos animais que daí a um pouco estavam juntos. Segunda fase, agarrar a ovelha e leva-la até ao tosquiador que já empunhava a máquina de tosquia. Maquina esta que veio substituir as antigas tesouras de tosquia, tesouras com que os tosquiadores cortavam a lã deixando relevos em forma de riscas ao longo do corpo do animal. Segundo os tosquiadores essa arte antiga hoje em dia é apenas visível em algumas festas tradicionais com esse propósito uma vez que a rapidez com que uma máquina eléctrica permite tosquiar uma ovelha é bastante superior. Há também uma maior facilidade no seu uso, permitindo haver mais pessoas a tosquiar e rompendo com o passado em que a tosquia era uma arte manual que requeria tempo de aprendizagem.
    A tosquia continuava. Todos os homens estavam empenhados em preparar as ovelhas para leva-las aos tosquiadores logo ao lado. Ouvia-se o som eléctrico da máquina a percorrer o corpo do animal, deixando-o despido e pronto a meter no curral para não se misturar com as não tosquiadas. Eu estava já contente com o conteúdo fotográfico que possuía e a minha mente já só me pedia uma coisa, meter as mãos à obra. A memória imagética daquela actividade já eu tinha registado, mas além do prazer que a fotografia me permite usufruir no congelamento de espaços de tempo não se compara ao outro prazer que ela me proporciona, inserir-me no meio, conhece-lo, fazer parte dele, vivê-lo. Larguei a câmara fotográfica e lancei-me para o meio do gado. Agarrei ovelhas, levei-as aos tosquiadores, voltei a coloca-las no curral. Nunca tinha visto uma tosquia e agora, inesperadamente não só estava a assistir com estava a participar nela, a fazer parte dela. Uma a uma todas as ovelhas foram tosquiadas e quando a ultima caminhava mais leve e fresca para o curral já a noite caía.
        Para terminar o dia em beleza, os dois irmãos não se pouparam nos petiscos. Vários tipos de enchidos caseiros, queijos, bacalhau desfiado com azeite, frango no churrasco entre outras iguarias eram regados com um belo vinho que amadurecias nas suas pipas havia quase um ano. O convívio tornou-se numa confraternização que o mundo não rural jamais será capaz de testemunhar. Sou hoje uma pessoa muito mais rica, mais conhecedora dos costumes que se vão desvanecendo por conta do êxodo rural e das mudanças sociológicas que atravessamos. Mas acima de tudo mais rico por me cruzar com pessoas que vale a pena conhecer e que estão sempre prontas para receber com um sorriso na cara quem vem por bem.






















Fotografias e Texto: Bruno de Andrade

4 comentários:

  1. Estas belíssimas imagens levaram-me de volta à minha terra e é bom ver por aqui rostos bem conhecidos.
    O Bruno faz umas excelentes fotografias e o texto faz-nos reviver tempos que foram intensamente vividos.Bem haja por esta partilha.

    Abr./Paula

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    1. Muito obrigado pelas palavras Paula.
      Se nada mudar até lá,esta será a foto-repoertagem da proxima edição do jornal "Mais Aguiar da Beira" (com os respectivos nomes dos locais e pessoas no texto).
      Obrigado
      Bruno Andrade

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  2. Excelente reportagem e excelentes fotografias, não haja dúvida! Parabéns por este belíssimo trabalho, cheio de expressividade. Recorda-me o quanto adoro este Portugal, tão rural, em que eu própria vivo.

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