terça-feira, 3 de outubro de 2017

Bagaço. A Tradição e o Alambique


Os chapins cantam e acompanham-me ao entrar na quinta. Apesar de ser outubro, o sol faz-se sentir bem e sou brindado com uma manhã quente, em que sinto logo o perfume das romãs maduras ao passar o portão. Do lado de dentro sou presenteado pelo belo quadro daqueles que me esperam a preparar o “estaminé” indiferentes às galinhas e patos que aleatoriamente ali passeiam debicando aqui e ali. Depois dos cumprimentos tão autênticos como só as pessoas genuínas desprendidas do materialismo sabem ter, reparo que o alambique, essa grande e bonita peça de cobre já se encontra no lugar. Desloco-me até ele por entre festas ao apelativo cachorro branco de manchas castanhas que late feliz e abana a cauda pedindo-me apenas para ficar com ele ali a brincar o resto da manhã. O dia quente, dando tréguas ao comum frio de outono nesta altura do ano, dá um toque primaveril à quinta, que se movimenta cheia de vida e onde se sente o perfume da fruta da época e das flores cultivadas para enfeitar as campas no dia 1 de novembro. No alambique colocado estrategicamente por cima do que irá ser uma fogueira, é colocada palha no fundo e é-me explicado que serve para o bagaço não agarrar ao cobre, havendo também agora umas grelhas próprias para o efeito. Ainda assim, se é para fazer o mais tradicional possível, será feito como antigamente, como foi aprendido, como as anteriores gerações passaram e como as presentes irão passar às futuras. Já faz tempo que o líquido se foi, agora só a parte sólida do mosto resiste no lagar, o bagaço. O vinho que dele saiu já se encontra nas pipas e nas cubas a maturar, depois da fermentação. O suave e agradável cheiro a uva esmagada emana no ar ao ser colocado dentro dos baldes para por sua vez ser colocado dentro do alambique, esta quase papa de cor vermelho escura. A fogueira é acesa e o fumo dissipa-se pelo lugar ouvindo-se o crepitar da rama seca que o acende. De seguida é posta a parte superior do alambique onde é colocada água fria. Estas duas partes são seladas com uma massa de cinza para não haver fuga de vapor durante o processo. O calor do lume aquece o bagaço que por sua vez vai criar um vapor que sobe e ao chegar ao local onde está a água fria vai condensar e tornar-se líquido. Por uma canalização interna, este líquido sai para o exterior sendo já o produto que se deseja, a aguardente bagaceira. Indiferente a toda esta rotina que se repete ano após ano, a matriarca da família que presa pelo bem-estar da quinta e dos animais que cria, segue também a sua própria rotina diária e já tem junto a si um molho de folhas de couve que corta finamente para os galináceos, que acomoda como se fosse parte da sua vida, pois como ninguém sabe a importância que os bichos têm no sustento familiar, como pelos laços que com estes cria desde o seu nascimento, numa relação de respeito onde terá sempre de dar para um dia receber. Enquanto isso, um fio do néctar que agora vê a luz do dia começa a jorrar, saindo, transparente, por uma cana finalizada por uma espiga de cevada que, serve exclusivamente para guiar o fio para que caia certinho no funil adaptado e por fim no garrafão. Não sou de ferro, portanto não seria de esperar que saísse dali sem provar o bagaço acabadinho de fazer. Depois de recolhe-lo com um copo diretamente do fio que jorra do alambique, inundo as narinas com o cheiro forte mas agradável que não consigo descrever de outra forma se não: bagaço. As papilas gustativas recebem-no com curiosidade, apreciam-no e empurram-no goela a baixo. Tá provado e aprovado. O trabalho ainda não acabou. É preciso limpar o local e deixa-lo impecável para outros trabalhos que na agricultura duram o ano inteiro. Depois de despejada a água e de tirar a parte superior do alambique e colocada a vasilha no atrelado, o trator dirige-se por entre patos, galinhas e galos e com o cachorro alegre e barulhento para o terreno ali próximo para ser despejado e lavado. Depois de ser extraído vinho e aguardente, o bagaço ainda não acabou a seu percurso e é um regalo para os terrenos de cultivo, um ótimo fertilizante natural. Agora sim, é tempo de dar descanso ao corpo com um repasto com os sabores ricos das aldeias, com sabores dali mesmo, daquela quinta que para esta família é riqueza maior, é parte integrante das próprias vidas de quem dela cuida e lhe tira o sustento.
Alambiques há, mais ou menos industriais, preparados para receber o bagaço de muitos produtores e realizar a tarefa mais rápido. No entanto, ainda há quem resista a esta demanda industrializada e prefira fazer as coisas à moda antiga, de forma caseira, no seu próprio alambique, em sua casa, imortalizando toda uma tradição.
















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