quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Um Dia no Pátio


A tia Júlia levantava-se ao romper da aurora para abrir às galinhas. Desajeitadas, lá saiam elas pela porta da capoeira e rapidamente se espalhavam pelo pátio esgravatando aqui e ali, bicando umas areias e uma ou outra erva daninha que sobrevivera à astúcia herbicida das poedeiras no dia anterior. O ranger das dobradiças ferrugentas que sustentam a velha porta de madeira de carvalho anunciava que a tia Alice estava prestes a sair de casa.
            - Bom dia vizinha - diz a tia Alice mal avistou a tia Júlia. - Então muitos ovos hoje?
            - Não vi, ainda está uma galinha a pôr - respondeu a tia Teresa a olhar para a ave aninhada no feno a cacarejar. - Tenho é de arranjar um galo pra ver se ponho uma destas a chocar uma ninhada.
            - Realmente já há muito tempo que não tem uns pintainhos a passear no pátio. Mas agora o seu neto dava cabo deles com a bola. Eu vou-me à quinta acomodar os porcos e os coelhos, aproveito e trago uma couvita pra cozer com umas batatas pro almoço. O  meu Manel é só batatas, só batatas, que hei-de fazer... - arrematou a tia Alice ao afastar-se.
            - Vou fazer o café que daqui a nada a minha Fátima vem-me cá deixar o garoto. Até logo.
            Naquele pátio partilhado por quatro casas, era comum os vizinhos trocarem os seus produtos sem terem de combinar. Quando alguém chegava das suas terras trazia legumes ou ovos em maior quantidade. Era assim que todos faziam, era assim que todos tinham recebido os princípios de gerações anteriores e procuravam transmiti-los aos seus descendentes. Ali partilha-se, ajuda-se o próximo, ninguém sabe o que queria dizer a palavra "solidariedade" mas todos a praticam naturalmente.
            A tia Augusta aparecia sempre ao meio da manhã para regar o canteiro à porta da sua casa. Quem ali passava não ficava indiferente ao cheiro das roseiras bem cuidadas e dos cravos brancos. "Tenho de ter material suficiente para o Dia de Todos os Santos", dizia ela saudosa do seu marido que partira para o descanso eterno havia já alguns anos.
            Por volta do meio-dia a buzina estridente a ultrapassar de longe os decibéis permitidos por lei não deixava dúvidas que o padeiro tinha chegado. O Aníbal chegava com pressa, saltava do lugar de condutor e abria a porta lateral da carrinha com pressa e aviava os clientes com pressa. Mas no meio desta pressa toda e por entre um pão de centeio, duas broas de milho e meia-dúzia de papo-secos havia sempre lugar para as notícias da aldeia circularem. "O javali estragou o milho não sei a quem, o fulano discutiu com cicrano por causa das extremas, o padre anda muito amigo da filha de tal pessoa". Contava as novas com um olho no pão outro nos trocos e ouvia outras novidades já com um pé no chão outro na carrinha pronta para zarpar.
            - André, anda almoçar - gritava a tia Júlia ao ver o petiz especado no dentro do galinheiro. - Que é que tás a fazer aí dentro?
            - O tio Carlos disse que se eu quisesse que a barba me crescesse mais rápido tinha de dormir uma noite com as galinhas - respondeu o garoto com cara de quem esperava ou não aprovação da avó.
            - Rais palira o teu tio, ainda é pior do que tu. Vai lá lavar as mãos e vai pra mesa que o avô tá à espera.
            À tarde as vizinhas juntavam-se no pátio. Falavam das eleições que aí vinham, dos namoros na aldeia, dos doentes, do cultivo, dos animais. Debaixo da parreira das videiras debulhava-se o feijão de quem o tinha e escolhia-se o bom para guardar e o furado para deitar aos porcos. Havia quem fosse à venda da tio João Lopes aviar a mercadoria e ver se chegou correio. No pátio o garoto estava sentado a conduzir o carrinho numa estrada que a sua imaginação desenhara na terra. O Finote, o cão já velhote da tia Augusta fazia-lhe companhia deitado ao seu lado. Conhecia o miúdo desde que nasceu e criou um laço de protecção e fieldade.
            - Então André, não vais pra casa? Daqui a nada tá de noite - dirigiu-se-lhe a tia Alice ao pé da porta de carvalho de sua casa cujo peso se preparava para fazer ranger de novo as velhas dobradiças, com alguns ramos secos na mão para atear o lume.
            As galinhas já estavam na capoeira pelo que a tia Júlia só teve de confirmar se estavam todas e fechar a porta. Agarrou carinhosamente no garoto pela mão e levou-o à mãe que tinha chegado para o levar. Entrou em casa e fechou a porta atrás de si. O Finote ficou pelo pátio por mais algum tempo a apreciar a calma e a paz que a sua idade pedia. Com o cair da noite acenderam-se as luzes dentro das casas. As chaminés fumegavam o negrume da combustão em direcção ao céu onde nuvens passageiras marcavam presença. O Finote por fim levantou-se e caminhou até casa onde sabia que estava uma lareira acesa, à frente da qual iria continuar o seu descanso até dormitar.
            O pátio estava agora vazio, contrastando com as vivas noites de Verão quando os vizinhos fazem serão na rua a desfrutar do ar nocturno fresquinho. As luzes no interior das casas acabaram por se apagar, ficando agora o pátio iluminado à luz fraca e intermitente de um candeeiro público que não tarda iria apagar-se também. Um gato cinzento patrulhava os telhados na escuridão silenciosa da madrugada. Em breve chegará a aurora. Amanhã cedo começará um novo dia no pátio.

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