sexta-feira, 18 de maio de 2012

Encontro com Antigamente


As rodas de ferro de um carro de bois faziam um barulho que nem chegava a ser metálico no empedrado da estrada mesmo em frente à venda da Tia Zeca. Na década de 1960, a mistura de taberna e mercearia da Tia Zeca era paragem obrigatória para quem passava, para quem queria enviar uma carta, para quem queria comprar um pouco de arroz ou massa vendida avulso. Anos a fio uma tradicional venda no rés-do-chão colmatava as mais variadas necessidades da população dornelense. No carnaval as crianças que passavam em frente à venda a caminho da escola entravam para comprar estalinhos, máscaras e confettis. Alegria e sonhos saíam daquele estabelecimento. As décadas de 1970 e 1980 foram pródigas em troca de correio postal. O grande “boom” da emigração fez-se sentir em Dornelas como em qualquer aldeia da Beira Interior. Cartas no Natal, nos aniversários, no fundo durante todo o ano ligavam familiares e permitiam a troca de informação além-fronteiras. Na fachada da venda uma caixa postal vermelha na parede e um placar do senhor montado no cavalo a tocar trombeta com a inscrição “CTT” denunciavam que era ali que Dornelas se ligava ao mundo. A Tia Zeca enviuvou faltavam três anos para fazer cinquenta anos de casada. O seu marido, companheiro de vida e parte fundamental nos destinos de tão importante estabelecimento partiu deixando a esposa mais de duas décadas à frente do destino da venda de todos os dornelenses. As décadas de 1980 e 1990 trouxeram verões calorosos em que as crianças se deliciavam com os gelados da “Olá” que nunca faltaram naquela venda. Crianças livres, que faziam da rua e do ar livre o palco das brincadeiras, onde o espirito da amizade se notava nas calças rotas e joelhos esfolados, nas meias-calças coloridas com borboto e sandálias sobre utilizadas, nos jogos e nas gargalhadas. Domingos soalheiros com velhinhas sentadas nos bancos de pedra encostados à venda ponham a conversa em dia. Falava-se de pessoas, falava-se da agricultura, falava-se dos animais de criação, falava-se da vida. E a Tia Zeca empunhava um garrafão de “Catalino” para servir simples ou traçado a homens que paravam, conviviam, negociavam gado e produtos agrícolas.
O início da década de 2000 marcou o fim de uma vida ao serviço da comunidade. Ainda se viria a transaccionar em euros durante 2 anos. Tudo fez a Tia Zeca para perlongar a existência deste estabelecimento. Mas o tempo não para nem dá tréguas. Há uma altura da vida em que o avançar da idade e as consequências desta falam mais alto que a vontade. Resiste o rés-do-chão que foi um dia a capital do movimento rural de uma comunidade. Resiste a Tia Zeca que olha pela porta vultos que passam apressados ao som da chuva primaveril no empedrado da estrada. Espera receber quem queira entrar para se sentar ao seu lado e conversar… e recordar…


Nota técnica:
Fotografia vencedora do concurso "Imagens com História" da revista "O Mundo da Fotografia Digital" nº 87 (Julho 2012)
Agradeço a disponibilidade da Sra Maria José Tenreiro, conhecida como Tia Zeca por permitir este e outros registos fotográficos.
A fotografia foi captada com uma câmara fotográfica Canon EOS 60D com lente 18-135mm, tripé, cabo disparador e luz ambiente. Modo prioridade à abertura. Abertura de diafragma f/3,5. Velocidade de obturação 1/10s. ISO 400 (fraca luminosidade e assunto em movimento requeriam um tempo de exposição não muito longo, daí o ISO elevado).

Fotografia e texto: Bruno Andrade

2 comentários:

  1. Que bonita homenagem a todas as "tias Zecas" (e "ti Zés") das nossas aldeias da Beira mais Alta.
    "Recordar é Viver".

    O meu abraço forninhense/aluaP

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado Paula.
      É sempre bom ouvir essas palavras. Parabéns também a ti pelo trabalho que desenvolves por Forninhos.
      Abraço

      Eliminar

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...